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Saga das Almas
A NOITE

I
Muito caro me custa esse perdão
Que ora pedes a esta alma cansada
Como esquecer a visão do clarão
Da fogueira, dos corpos pelo chão
Na madrugada ‘santa’ quão macabra?
Eu lembro, ao longe, o trigo ainda crescendo
A brisa fresca em final de verão
O lar singelo, o pão, a palha em leito
A vida nova, a esposa, filha ao peito
E a ventura a encher-me o coração
À noite, a prece agradecendo o dia
A sorte, o labor justo, a mesa posta
A nova fé que protestou a antiga
A liberdade ansiada quão temida
De alforriar do jugo a Boa Nova
Eu lembro aquela madrugada em trevas
A porta abaixo, a estranha invasão
O grito, o medo, a força que impera
E eu, de joelhos, a implorar por elas
E elas, aos prantos, me esticando a mão
Cristãos em ódio matando cristãos
Massacre em França, em nome do Cordeiro,
Oculta o medo em trono ver ao chão
Engana o povo, usa Seu nome em vão,
Escondendo a verdade a qualquer preço
Tu desconheces ódio e a agonia
De estar, ainda vivo, na fogueira,
Vendo morrer, na espada, esposa e filha
Por sermos huguenotes em fé e vida,
Após traídos pela realeza
E arder sem mais sentir a dor que queima
Por me queimar o ver elas morrendo
Por mãos que ‘inda há aos montes sobre a Terra
Demônios que inda grunhem tal qual feras
Caçando os seguidores do Cordeiro
Loucura o que senti ante a surpresa
De ver-me vivo após morto meu corpo
Podendo, do invisível que me ateia
Caçar servis carrascos da realeza
Buscando, assim, curar a dor que sofro
Enganam-se os que creem haver um inferno
Com servos da maldade a alanhar
O que há é a justiça a fogo e ferro
Posta nas mãos das vítimas, que a envergam
Para de algozes d’antes se vingar
Rastejo em lama e ódio morte afora
Mas trago, acorrentados à desdita,
Verdugos da antes Louvre poderosa
Para que não esqueçam a noite inglória
E sorvam em morte o que sorvi em vida
II
E agora aqui me chegas, Enviado,
Anjo de olhar em casta mansidão
Me cantas que elas nos céus me aguardam
Que em nome do Cordeiro inda me amparam
Ansiando ver brotar-me o perdão
Me alenta a dor sabê-las entre os justos
Em Paraíso que eu não mereci
Quisera eu por elas ser mais puro
Olhar o algoz sem mais vingança em punho
Merecer a ventura e ser feliz
Dizes, anjo, que devo acreditar
Naquele Mestre sem religião
Naquela Vida que só fez amar
Naqueles lábios sempre a consolar
Naquele Amor que exala compaixão
Falas de Amor que abranda a Justiça
De Compaixão com dom de libertar
Talvez exista a fé que não mais fira
Prometa que em teu céu não há mentira
Para que eu possa me regenerar
Agora compreendo que o vingar
Causou, na Morte, outra separação
Não as segui por não os perdoar,
Me aprisionei ao os aprisionar
E adiei minha libertação
Mas, oh! Eis que elas surgem qual estrelas
Esposa e filha em luz a me abraçar
Me dizem que no céu a Paz viceja
Sem ter separação por raça ou crença,
Origem, por nobreza, ou pensar
E o fulgor do olhar que me invade
Desmancha o ódio de meu coração
Transmuda a treva em mim em claridade:
Saber que existe um céu onde é verdade
Viverem os diferentes como irmãos
E, soltando os grilhões com que os oprimo,
Elas libertam algozes do pesar
Me dizem sermos anjos decaídos
Do Pai Amado, equivocados filhos
Que o bom Cordeiro mandou libertar.
(Samia Awada)


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Palavras-chave:
noite de São Bartolomeu, perdão)